quinta-feira, 24 de março de 2011

A narrativa das ruas


Quando se olha os bairros e as ruas com olhos de estrangeiro, salta aos olhos a sua narrativa. Não me refiro à retórica de arquitetos e urbanistas; do Poder público, das agências turísticas e outras instituições da cidade; mas aos sonhos das pessoas, que emergem no uso e compartilhamento cotidiano dos espaços; na intimidade que se desenrola no lar e na vizinhança. A rua nos conta um dedo prosa ao dobrarmos a esquina, ao repararmos na forma como se distribuem, por exemplo, os equipamentos públicos, dos hidrantes às praças.

O comércio de rua é sempre um sinal eloqüente de vitalidade. Quanto maior for a sua presença, mais visível será a vida ali: A forma e o display das mercadorias, os gritos dos comerciantes, fazendo o pregão de suas mercadorias, o entre e sai de fregueses e clientes, o olhar compartilhado e informal sobre a rua, vigiando sua normalidade trivial. As cores, os aromas, os desenhos dos prédios: haverá harmonia ou será um discurso caótico e confuso?

Caminhando por Paris nesta temporada, me dou conta de que estou lendo um novo livro. Um livro em outro idioma, que vou aprendendo à medida que viro suas páginas. Aos poucos, o enredo vai fazendo sentido. Percebo sua vitalidade, mas também as pressões por mudanças que se impõem sobre ela e que são comuns a todas as grandes metrópoles do mundo, que competem entre si pelo prestígio, pelos turistas e por altos negócios.

Há um discurso urbanístico comum, uma retórica da modernização das cidades, da racionalização dos espaços. Um discurso imobiliário que se adéqua muito bem à globalização (já ouvi a expressão urbanismo neoliberal). Desde Barcelona, por exemplo, todas as grandes metrópoles, inclusive o Rio, querem renovar seus portos, transformando os velhos galpões em museus de escritórios de arquitetura renomados e áreas de lazer e de condomínios de luxo.



Enquanto Paris protege seu patrimônio cultural e urbanístico, cidades como o Rio botam tudo abaixo em nome da modernidade. É compreensível, pois as pressões são vigorosas. Mesmo na capital francesa são perceptíveis mudanças que tornaram bairros irreconhecíveis. E há quem sustente esses movimentos com fervor quase religioso, sobretudo arquitetos. Ontem li um artigo no New York Times em que o autor, um arquiteto, recuperava a figura de Robert Moses, como um grande empreendedor e visionário de Manhattan. Segundo ele, Moses tem sido injustiçado ao ser lembrado como o homem que destruiu boa parte de Nova York. Segundo o autor, esses que o atacam são pseudos defensores do patrimônio histórico e da memória urbanística da cidade. Ora, vá perguntar aos moradores que foram removidos, expulsos o que eles pensam de Moses.



Enfim, o problema é exatamente esse. A população diretamente afetada nunca tem voz nas decisões dessa natureza. Muitos arquitetos são extremamente arrogantes quando o assunto é a cidade, como se só eles tivessem autoridade para falar sobre o quê construir e como. Na maioria das vezes, infelizmente, eles mal lêem a narrativa das esquinas, os enredos da intimidade à qual se tem acesso pelas escadas dos prédios antigo, pelos halls e pátios internos. Aos labirintos que as ruas de certos bairros formam, lembrando as cidades medievais e por aí vai.

Nenhum comentário: