sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

A Índia de Bosco e Antonia

Em sua coluna semanal no Segundo Caderno do Globo, Francisco Bosco usou a notícia sobre o estupro coletivo de uma jovem de 23 anos em Nova Délhi, que resultou em sua morte, para contar suas impressões pessoais sobre a misoginia na Índia, a partir de uma viagem realizada com sua mulher, minha amiga Antonia, há alaguns anos. O ataque, com requintes de perversão e violência, provocou uma onda de protestos no país e revoltou a chamada comunidade internacional. A pressão oriunda da indignação geral foi tão grande, que acabou resultando na aprovação às pressas de uma legislação que torna mais severas as penas para agressões contra as mulheres, algo bastante comum e quase sempre impune.  

Esse caso já havia chamado minha atenção não apenas como fait divers, mas pela forma como foi coberto pela imprensa em geral. De todos os jornais que acompanhei, apenas o francês Le Monde e o americano New York Times fizeram um esforço para contextualizar a história dentro da complexidade cultural indiana. Nem mesmo o El País foi além da história do estupro. Essa contextualização é importante especialmente para quem não é indiano e desconhece a complexidade cultural daquela sociedade: patriarcal, misógina, dividida em castas, impregnada de tradições religiosas conservadoras se olhadas do ponto de vista ocidental, onde os casamentos são ainda arranjados segundo determinados valores etc. 

O ataque não foi apenas um estupro coletivo qualquer, mas uma reação furiosa contra uma classe média que vem surgindo na Índia, estimulada pelo avanço econômico como potência emergente, e que vem incorporando alguns valores seculares ocidentais. Os seis assassinos e estupradores mostraram todo o seu ódeio contra essa nova Índia, expressa nas roupas e nas maneiras do jovem casal de estudantes. Enfim, não sou especialista em Índia, mas, talvez, a "afronta" maior do casal, e sobretudo da jovem, tenha sido a expressão de um individualismo, como valor moral, em uma sociedade traficional, patriarcal, misógina, e extremamente hierarquizada em seus valores.

Me lembrei do episódio da jovem que foi agredida em Ipanema, nos anos 80, por fazer topless. Hoje, não crieo que haveria tanta reação, embora, se não me engano, o topless seja proibido por lei. Será que mudamos tanto? Valores e costumes estão sempre em choque nos processos sociais urbanos, pois as metrópoles vão se transformando incessantemente, apesar de vivermos nossos costumes como imutáveis e absolutos.

Esperei que Bosco, um filósofo que admiro muito, fosse fazer uma avaliação mais sensível da Índia e acabei surpreendido por um certo etnocentrismo, expresso ao narrar o sufoco que passou com Antonia na viagem dos dois à Índia e, sobretudo, Nova Délhi, descrita por ele como uma metrópole caótica, densa e provinciana.  Ele chega a mencionar a falta de capacidade da população local de relativizar o outro, o estrangeiro com costumes distintos, como sintoma de provincianismo, sem se dar conta da sua própria falta de relativização nesta análise generalizadora daquela sociedade. Eu que fou fã dos textos dele, confesso que fiquei surpreso com essa falta de, digamos, sensibilidade antropológica. 

Em determinado momento ele conta que foram visitar uma mesquita, cujo acesso se dá por uma rua estreita de bazar (que ele chama de camelôs, diluindo toda riqueza do suq árabe), e acabaram barrados grosseiramente porque Antonia estava de bermuda. Taí a expressão nítida de um choque cultural. Mas creio que se faltou sensibilidade aos guardiões muçulmanos do templo, também faltou sensibilidade ao casal brasileiro em entender que estava num país estrangeiro, com costumes tradicionais e religosos conservadores, e que era preciso observar essas regras. Não dá simplesmente para achar que o mundo todo tem que aceitar o padrão ocidental como valor cultural universal. Até porque aniquilaria as diferenças culturais tão fundamentais para a sobrevivência do ser humano. 

Por outro lado, perdoo Bosco, pois escreveu seu texto a partir do sentimento de amor e proteção à minha querida Antonia, o que torna uma análise mais isenta difícil. E é particularmente comovente, em sua narrativa, a parte em que descreve a crise de choro de minha amiga, sua mulher. Qualquer leitor sensível terá, no mínimo, compreendido a frustração de Antonia naquele momento.

A deplorável violência contra as mulheres na Índia está dentro de um contexto cultural complexo. É preciso entendê-lo. A reação da população à violência dos estupradores mostrou exatamente o tipo de choque cultural que está acontecendo ali e, mais do que isso, aponta para mudanças importantes, que se estabelecerão ou serão violentamente massacradas pela tradição. O tempo dirá.

2 comentários:

Unknown disse...

Para quem quiser ler o texto do Bosco:

http://oglobo.globo.com/cultura/misoginia-em-nova-delhi-7231822

ipaco disse...

Valeu, Norton. Ficou faltando o link. Obrigado. Abs.