domingo, 23 de fevereiro de 2014

Guimarães Rosa, um regionalista?

Estou lendo o livro de cartas do Caio Fernando Abreu, organizado por Italo Moriconi, e me deparei com uma delas, endereçada a Hilda Hilst, na qual o escritor cita Guimarães Rosa como um escritor regional. Essa classificação ficou me perturbando a mente dias e dias e, por fim, me obrigou a refletir sobre o incômodo. Pra começo de conversa, preciso esclarecer que os romances do Caio nunca me pegaram. Ele foi um bom escritor, mas não fez nada de extraordinário no plano  da literatura. Nem acho que esse tenha sido o sua meta, sendo filho de uma época desencantada com o fim de utopias que movimentaram as gerações anteriores, seja pelo viés político da “revolução”, que trará justiça social ao mundo; ou pela transcendência individual por meio do “desbunde”. É justamente esse caráter iconoclasta de quem já não tem mais nada a perder que permite perturbar cânones e inverter ordens. O que é bom.

Mas isso não confere necessariamente verdade e esses abalos, e achei rasa a afirmação de Caio sobre o velho Guima. Chamá-lo de escritor regional é não perceber o vigor e a complexidade de sua produção. É limitá-lo ao universo restrito da gemainschaft, o mundo rural em oposição à vida urbana, rica em contrastes furiosos e constantes. Mas o universo de Guimarães Rosa é de uma complexidade que está mais perto da gesellschaft. As grandes questões existenciais que perpassam o ser da cidade, também estão lá na mente dos personagens de Guimarães Rosa, enquanto olham a margem do rio.

Veja-se o caso de Grande Sertão: Veredas: Um romance em que o narrador é o protagonista, que dialoga com um interlocutor invisível e que, muito provavelmente, vem do universo urbano. O pano de fundo da história é uma guerra, justamente a guerra entre uma forma de vida de valores patriarcais e religiosos que vai sendo confrontada pelo racionalismo da República. Esse conflito é que põe o sertão em turbulência, com antigas e novas forças sociais se digladiando Gerais afora adentro. Coronéis, jagunços, vaqueiros, padres, policiais e outros personagens que se cruzam nesse drama social trazem o contraste desses mundos em choque. Nosso protagonista, Riobaldo, é arrastado contra sua vontade para esse conflito e se torna um grande líder, depois de muito relutar. Ao mesmo tempo, se apaixona por um companheiro, mergulhando numa crise de identidade profunda. Afinal, não se reconhece como homossexual, mas não consegue explicar e muito menos negar a atração por Diadorim. E, por fim, a profunda discussão metafísica sobre a existência de Deus e o diabo. De fato, classificar um romance desse como uma mera produção regional, com todo o respeito ao Caio, uma percepção míope.

Um trecho do Grande Sertão

"O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas — mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso que me alegra, montão. E, outra coisa: o diabo é às brutas; mas Deus é traiçoeiro! Ah, uma beleza de traiçoeiro — dá gosto! A força dele, quando quer — moço! — me dá o medo pavor! Deus vem vindo: ninguém não vê. Ele faz é na lei do mansinho — assim é o milagre. E Deus ataca bonito, se divertindo, se economiza."

2 comentários:

A VIDA NUMA GOA disse...

Guima é tão regionalista quanto Tolstói e Dante.

ipaco disse...

Exatamente!