sábado, 18 de julho de 2009
Cantiga de um quase atropelo
Querida amiga, a grande avenida se estendia muito além dos meus passos, a luz baixa do sol incendiava os olhos e a cabeça seguia longe, um tanto letárgica pelo mormaço. O calor afetava o cerebelo e me doíam os ossos ao pisar o chão. Por onde andaria você? Me perguntava entre as muitas coisas que me queimavam o peito. Nunca mais tivera notícias desde aquele adeus chuvoso, muitos invernos atrás, numa esquina de idioma estrangeiro, para lá dos trópicos. De repente, num cruzamento, o sinal fechando, respondo instintivamente à buzina. O chamado era para mim e nosso era o carro. O velho guerreiro de estradas esquecidas, que compartilhamos naquele tempo transformado em mais-que-perfeito pelo sortilégio da memória. Sincronicidade, pensei sem pensar, já atravessando a rua em sua direção, sorriso de ponta a ponta. Mas estanquei com o assovio da freada brusca do outro carro que vinha apressado, animal japonês de todas as tecnologias, para ocupar o espaço vazio entre a calçada e o nosso velho jipe, parado na faixa do meio, preguiçoso. Foi por pouco, amiga. E, no fim, só o triz de um susto e a constatação de que não era, afinal, você ao volante. E, enquanto o japonês me xingava a desatenção, percebia: tampouco era o nosso velho carro. Nem sequer sincronicidade; apenas desejo e fantasia. O alguém que agora estava atrás do volante eu conhecera outro dia. Me dizia, assustada, cuidado! E eu concordava, constrangido. Certamente não valeria a pena ser atropelado pela saudade.
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11 comentários:
Lindo o texto Paulo! Meus sinceros parabéns!
Gostaria de pedir-lhe autorização para postá-lo em meu blog, com os devidos créditos e links de redirecionamento ao seu.
Abraços,
Felipe
Salve, Felipe. Fique à vontade para postar o texto. Aproveitarei para conhecer seu blog. Abração.
Adorei muito esse!
Muito, muito bom!
Abração!
Obrigado, Thiago. Valeu mesmo. É aquele tipo de texto que brota de repente a partir da lembrança de um ocorrido qualquer... Abração.
Adorei a primeira foto, a do espelho. Linda, linda.
Xau Paulinho!
É uma amiga das atingas. Nos divertimos muito fazendo essas fotos, lá por volta de 1984...
Que beleza esse texto e essas fotos. Guarda certo parentesco com uma letra que fiz no final do ano passado pra uma melodia linda de um pianista amigo meu. Mandou muito bem aqui, cara.
Valeu, Marcelo. Essas coisas de saudade e memória são sempre inspiradoras...
Paulo,
Lindo texto. Sou atropelado pela saudade quase que diariamente.
Abraços,
Querido Casé, então somos dois! abração.
Paulo,
Como havia dito, publiquei seu texto, com os devidos créditos, em meu blog. Me tornei seu leitor assíduo e faço coro com os demais com relação à beleza e à profundidade do que escreveu.
Se quiser fazer uma visita à sua própria obra em meu blog, pode visualizá-la em http://tribunaboemia.blogspot.com/2009/07/preciosidade.html
Abraços.
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