sábado, 2 de outubro de 2010
A invenção das marés
Não deixam nunca de me surpreender as marolas que a mídia cultural faz, criando ciclos virtuosos de marés, contra as quais nem é bom pensar em remar. Há coisa de uns dez anos, havia toda uma euforia em torno da poesia de João Cabral de Melo Neto, à revelia do próprio autor, que era tido meio que como um elo racional entre a poesia, digamos, literária propriamente dita e as rebeldias e inovações das vanguardas, notadamente o concretismo. O poeta, nessas narrativas jornalísticas, dava sentido racional a uma identidade literária brasileira, que começava no modernismo e chegava ao presente, no tropicalismo. Cabral foi, nesse período, o poeta aplaudido pela crítica dos cadernos culturais e de literatura, que olhava — e olha — com certo desdém para as linhagens e as tradições que não se vinculavam mais diretamente ao eixo: modernismo, antropofagia, Cabral, concretismo e tropicalismo. Mesmo essa linha do tempo sendo questionável, ela estava na lógica dos argumentos que figuravam no jornalismo cultural.
Passado algum tempo, e os holofotes agora lançam luz sobre a figura de Ferreira Gullar, que acaba de lançar sua antologia completa, participou de gravações de sua poesia, recitando o maravilhoso Poema sujo, entre outras efemérides, que permitiram resgatar o poeta do limbo, também, como em Cabral, à revelia do próprio Gullar. Quando Cabral dominava nas páginas da Ilustrada ou nas citações de Caetano Veloso, entre uma canção e outra, alguns viam Gullar com olhos muito menos generosos naquele então, chegando mesmo a classificá-lo como uma espécie de Judas do concretismo, por ter rejeitado o movimento que ajudara a criar.
Não importa o mérito dessas considerações, isto é, se Gullar ou Cabral são ou não de fato “o cara”, exceto para ressaltar as ondas cíclicas de admiração e ódio de especialistas e críticos (sejam estes jornalistas, acadêmicos ou mesmo escritores) de nossa imprensa “especializada”. O que me faz lamentar mesmo é a falta de generosidade com as manifestações que não estão no fluxo na maré. E considerando-se o momento pós-moderno, ou seja lá como se chama isso que vivemos, e que Tavinho Paes define muito bem quando diz que se trata de uma reafirmação incontrolável de “mais, mais, mais, mais, mais... do mesmo”, isso se torna de fato algo grave.
Em primeiro lugar, há muito pouca informação sobre determinados processos, certas correntes e manifestações individuais ou coletivas. A chamada geração de 45, por exemplo, saco de pancada dos moderninhos de plantão, é desenhada como um movimento amplo a ponto de incluir Gullar como uma de suas referências na poesia. No entanto, também é vista como um movimento que dá passo retrógado em relação ao modernismo, principalmente com respeito à sua segunda geração, pois propõe a volta à técnica literária e uma atenção às regras de linguagem, mesmo que seja para quebrá-las. Dominar as redondilhas e os sonetos, para poder abandoná-los em seguida.
Na prosa, como sempre, tudo é muito mais fácil. Nesse campo, definem a geração de 45 como o texto que abandona os enfoques culturalistas e ideológicos do período precedente, para instaurar um regionalismo, de um lado, ou urbanismo, de outro; mas com aprofundamentos psicológicos e inovações na linguagem. Um movimento para cima, que surfa na onda da redemocratização, do fim da segunda guerra, do desenvolvimento econômico e social de JK. Vêm daí nomes como Guimarães Rosa e Clarice Lispector, inventando linguagens — regional e urbana —, narrando aspectos psicológicos profundos e intimistas: narrativas em fluxo de consciência, entre outros experimentalismos, colocando o leitor na mente dos protagonistas, entre outras bossas.
Nenhum escritor de prosa da geração de 45, e vamos incluir na lista, marcada pela diversidade, Rubem Braga, Nelson Rodrigues, Lygia Fagundes Telles, Ariano Suassuna, entre muitos outros, enfrenta tanta crítica, quanto os poetas considerados pertencendo ao mesmo movimento. Mesmo levando-se em conta que o “formalismo” dessa geração é, talvez, o que tenha pavimentado a ligação entre o modernismo e as chamadas vanguardas literárias que surgiriam na geração seguinte, nos anos 50, a começar pelo concretismo, mas não apenas ele (não esqueçamos, por exemplo, do Poema Processo).
Mas isso tudo são banalidades quando se olha com o filtro do tempo. Fico feliz que tenham resgatado Gullar do exílio em que se achava, tachado de “poeta engajado” por seu histórico político ou de mais um “parnasiano enrustido”, querendo pôr regras no verso livre. E me pergunto: quantos poetas e escritores não estarão ainda perdidos no limbo, fora do alcance de nossos intelectuais de plantão nas páginas culturais dos jornais. Tenho encontrado algum conforto em páginas de blogs, como o de Antonio Cícero (no link ao lado), Tavinho Paes, entre outros, assim como em revistas literárias digitais. Pode ser que esses espaços, ainda um tanto espalhados e perdidos na imensidão da internet, abram caminhos alternativos à miopia dos que hoje inventam o fluxo da maré.
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4 comentários:
Oi Paulo, não sei se lembras de mim. Trocamos uns e-mails há um bom tempo atrás sobre os discos do Manduka. Te re-mandei um há poucos dias pra ver se você tem alguma notícia. Sei que você é uma pessoa ocupada, mas só queria saber se existe alguma idéia de relançar discos dele ou se é possível adquiri-los em algum lugar.
Obrigado,
Raphael Gimenes
Especialmente aqueles impossíveis de achar na internet.. gravado na argentina, espanha, também aqueles dos anos 80... enfim, sou fã, e quero MUITO ouvir os discos dele. Recentemente consegui ouvir um gravado com o Thiago de Mello em 89 e fiquei boquiaberto.
Salve, Raphael. Me desculpe a demora, mas é que não domino essa coisa de enviar músicas pelo e-mail. Estamos preparando um CD coletânea do Manduka, que será lançado pela Biscoito Fino. Vou tentar desvendar esse mistério tecnológico. OU então combinamos de uma outra forma. Abs.
Que legal, uma coletânea.
Se você quiser, posso te dar meu endereço, e arranjamos como pago pelo frete :).
abs
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