Distante do Rio Botequim há alguns anos, fui convidado pela editora Casa da Palavra e por Guilherme Sturdart para participar da edição que chegou agora às livrarias, contribuindo com um ensaio sobre bares que saíram nas edições do guia, mas fecharam as portas em meio ao processo incontrolável de transformação da cidade. Ao mesmo tempo, fui convidado pela Subsecretaria de Patrimônio Cultural da Prefeitura, coordenada por Washington Fajardo, para participar do 1º Seminário Internacional do Bar Tradicional, com a presença de representantes de pubs britânicos, bierhauses alemãs e de bodegones argentinos. No evento, 12 bares tradicionais e centenários ganharam certificados de “estabelecimentos de interesse cultural da cidade”, o que não equivale a tombamento, como saiu publicado nos jornais.
Apesar de organizado pela prefeitura, o evento não foi nada
chapa-branca, ao se considerarem o nível de crítica e as observações duras
dirigidas ao poder público municipal, tanto por parte dos donos de bares
tradicionais quanto por parte dos palestrantes. Basicamente, o pessoal quer que
o reconhecimento da prefeitura vá além dos certificados e se concretize em
ações, como isenções de impostos, desburocratização de certas normas que
permitem o achaque dos fiscais aos donos de botequins e por aí vai. O seminário
ficou num meio termo entre um papo de botequim e um evento acadêmico, com a
participação de estudiosos da cidade, como o historiador Antonio Edmilson, o
economista Carlos Lessa, além do próprio Studart, e eu mesmo, com minhas
pesquisas antropológicas sobre botequim e sobre Botafogo.
Le Penty, meu botequim do coração em Aligre, Paris
Particularmente gostei muito das intervenções do pessoal de
minha mesa, que tratou do clima de botequim: o poeta Alexei Bueno, que
trabalhou na área de patrimônio cultural e esclareceu muita coisa importante
sobre isso; o ator Antonio Pedro, que está com uma peça sobre histórias de
botequins e fez uma crítica à tendência atual de o Estado tentar tutelar as
pessoas na questão do consumo de álcool e cigarro; Rosana Santos, dona do Bar
Luiz (onde tomei um excelente chope da Heinenken, após o primeiro dia do
evento); Fernando Breschnik, dono do Enchendo Lingüiça; todos mediados pelo jornalista
Pedro Landim.Também foi ótimo rever, eu que ando afastado das mesas de botequins, amigos queridos como Kadu Tomé, do Bracarense, seu Manoel, do Jobi, Kátia e Rosa, do Aconchego, Leo Feijó, do Boteco Salvação, entre outros. A ausência conspícua foi a de minha querida Mila Chaseliov, que trocou isso tudo pelo Muro das Lamentações.
No segundo dia, fiquei impressionado com a intervenção do
Antonio Rodrigues, do Belmonte, que, num tom nitidamente defensivo, confirmou
que não está interessado na preservação de casas tradicionais, mas sim comprar
aquelas que vão mal das pernas ou que não têm sucessores com disposição de
continuar no ramo, e transformá-las em casas de sucesso. “Apareceu uma galinha
morta, estou comprando”, disse ele. Ao ouvir isso, pensei logo no meu Bar
Brasil do coração, com sua chopeira de bronze. Localizado num ponto agora
valorizadíssimo, o botequim centenário vem sendo assediado por empreendedores
interessados, como o próprio Antonio e o pessoal do Carioca da Gema. Meu medo é
que ofereçam uma oferta irrecusável e adeus Bar Brasil.
Mas considerando as coisas no geral, desde a abertura, com a
fala do prefeito Eduardo Paes, aos donos de boteco, acho que está bem claro a
todos que o processo de preservação e mudança têm uma relação dialética
inevitável em qualquer centro urbano. A cidade é um lugar que se transforma de
forma constante e inevitável, mas também é uma realidade a resistência que seus
moradores impõem sobre o território, os estabelecimentos e as formas de vida
comum nos bairros.
Estamos num processo muito acelerado de transformação
urbana, não só pelos eventos anunciados a frente, como Olimpíadas e Copa, mas
pelo próprio processo de globalização das cidades numa lógica mercantil e de
concorrência, que impõe a todas elas reformas urbanas que vão desde a renovação
das áreas portuárias (Barlecona, Bilbao, Paris, Liverpool, Istambul e Rio, só para citar
alguns casos), cinturões de segurança (UPPs, no Rio, políticas de segurança em
Bogotá, política do broken window em várias cidades dos EUA, entre outros), políticas
de tolerância zero (choque de ordem no Rio) e por aí vai.
São as chamadas cidades-commodities, disputando no mundo
globalizado investimentos e turismo, e se reformando para tornar isso possível.
As conseqüências negativas são, evidentemente, a transformação radical das
cidades, o aburguesamento dos bairros, a piora dos índices de criminalidade
fora dos cinturões de segurança, a especulação imobiliária e a perda de uma
memória citadina, em que a tradição e o patrimônio urbanos são apropriados pelo
marketing, na tentativa de se criar uma marca publicitária para a cidade, a
partir de valores meramente mercantis, mas disfarçados de “autenticidade”.Com isso, a identidade de cada cidade vai se diluindo em meio às coisas que são comuns a todas elas, como se fossem um grande shoppingcenter.
No seminário do bar, vi nitidamente essas forças — tradição e modernidade — se digladiando pelo direito ao território da cidade.
6 comentários:
Bar da Adelina, seu boteco do coracao? Entao ve se aparece de vez em quando...
Vou sempre que posso, Jason... :-)
ah, se mila abrir um bunda-de-fora nas proximidades do muro das lamentações, vai fazer um bom pé de meia ! belo relato, PT. precisamos conversar, e já há muito ! quero saber detalhes dessa conversa toda dos últimos dias.
Vamos sim. Até porque as coisas continuam na sua intensidade cotidiana. Hoje foi aniversário de Adelina, estou chegando do bar agora, ainda trôpego de emoção. Bjs.
Ah, então você....?
Sensacional!
Pois é...
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