domingo, 4 de dezembro de 2011

Emoção e razão como narradoras


O Arnaldo Bloch publicou um bom artigo neste último sábado no seu espaço do Segundo Caderno do Globo. Intitulada A ponte entre dois cinemas, o articulista narra o seu encontro fortuito com Cacá Diegues, logo após ambos terem assistido ao novo filme de Eduardo Coutinho: As canções. Entusiasmado com o filme, Arnaldo pondera, no entanto, que preferiu o agora já clássico Edifício Master do documentarista. Cacá retruca, dizendo que As canções são uma obra-prima, ao passo que Edifício Master, um “circo dos horrores”, em que os personagens são apresentados sem um contexto que explique suas vidas, além do fato de viverem em um prédio de quitinetes de Copacabana. Cacá ainda cita o exemplo do programa de calouros do Chacrinha, hoje fetichizado na onda retrô que orienta a estética dos moderninhos pós-modernos, para descrever a situação de humilhação que, em sua opinião, Coutinho colocou os habitantes do Master.

Nessa querela, fico ao lado de Arnaldo. Me lembro que, à época em que o filme foi lançado, Coutinho disse que procurou justamente evitar o tom etnográfico — e não nos esqueçamos que algumas décadas antes Gilberto Velho fizera sua dissertação de mestrado exatamente sobre um prédio cabeça-de-porco de Copacabana, em seguida publicada sob o título Utopia urbana —, para mostrar seus personagens sem o filtro de uma análise antropológica. Ou seja, o diretor procurou justamente jogar na tela a vida daquelas pessoas sem explicação, como o Arnaldo sacou muito bem e apresentou como argumento na sua discordância em relação a Cacá.

Gilberto Velho parte das histórias de vida das pessoas do “seu” edifício Estrela (nome fictício, adotado para não constranger os moradores) para tentar evidenciar as representações sociais, ou seja, os sonhos de cidade feliz, poderosos o suficiente para levar as pessoas a morar em condições tão “apertadas”, física e simbolicamente. Coutinho não está interessado em nada disso. Ele não quer fazer uma generalização a partir da vida dos residentes do edifício Master. Ele quer apenas mostrar o caráter humano, digamos, em seu estado bruto, deixando as generalizações para o público. Coutinho buscou ficar orbitando em torno das emoções que o drama da vida humana sugere. Por isso, o publico ria e chorava ao longo do filme, como admitiu o próprio Arnaldo. E foi isso que incomodou Cacá. Pareceu a ele gratuito. Mas, estou com Arnaldo nessa. Essas emoções levam a uma reflexão próxima a que Velho nos proporciona pelo caminho da razão.

Com sua dissertação, o antropólogo prometia inaugurar uma série de pesquisas sobre Copacabana. E eu como estou envolvido em uma pesquisa sobre Botafogo, dialogando, como base teórica e metodológica, com certa tradição da sociologia que Velho também utilizou, acho que o melhor caminho para um ensaio antropológico profundo sobre a vida de um bairro — ou sobre qualquer outro assunto — deve combinar os dois caminhos. Apesar de Coutinho não pretender uma análise sociológica com edifício Master, hoje esse filme passaria bem em qualquer festival de documentário etnográfico.

Mas Arnaldo vai além em sua coluna. Ele cita o documentário sobre os suicidas que pulam da ponte Golden Gate — The Bridge, dirigido por Eric Steel  — para fazer um paralelo à sua discussão com Cacá. Ele diz que muitos amigos classificaram o filme como pornográfico, por seu caráter, digamos, explorador da dor alheia. Um argumento que se aproxima à expressão “circo dos horrores”, usada por Cacá em sua crítica a Edifício Master.

E aqui o artigo de Arnaldo me leva para outro ponto. O da pornografia e da censura. Bem, o assunto é mais do que explorado e refletido. Mas acho que é pertinente voltarmos a refletir sobre isso, num momento em que vários tipos e níveis de censura voltam na cena brasileira, sem muita reação dos “moderninhos” que constroem o sentido dominante da elite cultural atual. O caso da fotógrafa Nan Goldin, que teve sua exposição cancelada pela Oi Futuro por motivos morais e o filme sérvio proibido pela Justiça — primeiro em Minas Gerais, depois no resto do país (sem que os juízes tivessem visto o filme) —, por conter cenas em que há simulação de estupro de criança.

Lembro-me de uma amiga no Globo que me repreendeu: “Vocês antropólogos são relativistas demais. É preciso pôr um limite, do contrário tudo vale e seremos invadidos por qualquer bestialidade, perversidade e o escambau.” Disse a ela que concordava, afinal, antropólogo ou não, não vivo à margem da sociedade. Estou submetido a seus valores e representações. Mas o problema, para mim, é o Estado, ou a Justiça, ou a Igreja decidirem de forma draconiana esse limite por mim.

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