sábado, 30 de junho de 2012

Itinerários patafísicos para o sábado


Eis que chega o sábado e eu amanheço naquele estado híbrido, misturando euforia e cansaço. Há alguns anos, ligaria para Manduka para falar de tudo pelo nada, ou ao contrário. Ao seu alô, do outro lado linha, eu diria em tom solene: “Dom Manuel?”, imaginando-o em frente à sua janela, aberta para a imperial Petrópolis, onde resolvera se refugiar, solitário, nos últimos anos de sua vida. Rápido no gatilho, ele responderia imediatamente: “O Venturoso!”. Era o nosso código para o início de uma conversa sem fim, pelo universo mandukiano, de forte cognição literária e musical. Um tipo de saber e pensamento cada vez mais raro.

Depois que Manduka se foi entre as estrelas, além da nuvem de granito, bagunçando a ordem do firmamento, fiquei sem saber bem o que fazer neste despertar de sábado. A velha Modern Sound me salvava. Um banho rápido e antes do meio-dia já ocupava uma mesa mergulhando, ainda sonolento, no jazz do quarteto de Idriss ou dos grupos que se seguiram. Ali, viajava de volta à Nova York onde vivi nos anos 70: Blue Note, Sweet Basil, o estúdio Black Beans, de Dom Um Romão, os eventos de jazz nas ruas ou no Central Park. O clima de música na casa de meu pai. Jam sessions todos os dias (noites), com figuras como Claudio Roditi, Mauricio Smith, Richard Kimball, Naná Vasconcelos. Haroldo Mauro Jr., entre outros. Também as conspirações revolucionárias para derrubar a ditadura. Mas, a Modern para mim era de dia, e, assim, abria o fim de semana. Muitas coisas aconteciam depois.

No entanto, a loja de meu compadre Pedrinho Tibau fechou as portas e novamente fui lançado ao limbo nesse momento precioso que é o despertar de sábado. O começo do fim de semana já me foi mais animado. Ultimamente, tenho ficado na preguiça, rolando pela casa. Às vezes, se estiver chovendo, nem saio à rua, perdido em algum livro, ou ouvindo algum som da nova MPB, que se insinua à revelia de rádios, jornais e a indústria do disco. Preguiça e cansaço. O prazer de ter esse tempo para mim, solitário, sem solidão. Nesses momentos, é quase perceptível o tempo passando. A sucessão de minutos e horas ganha densidade e se torna quase um fenômeno físico, concreto. A percepção desenvolve músculos.

Mas ainda prefiro o prazer estratosférico das conversas espirais, aquelas que começam num ponto e circulam pelo universo algumas vezes, entre o primeiro e o segundo copo de cerveja. Soraya Simões sempre foi uma interlocutora mandukiana nesse sentido, mas multiplicada pela coisa feminina, cheia de curvas e delicadeza, mesmo nos seus momentos mais veementes. Hormônios, dirão os neurocientistas americanos, já pensando em desenvolver alguma pílula para controlar o “distúrbio”. E recentemente pude curtir prazer semelhante, ao conversar com Flavinha Bali, com quem dei passeios de mãos dadas por jardins mentais frondosos.

Como sinto falta de conversas patafísicas, sobretudo, depois de uma semana dura de trabalho, lidando com “fatos” numa redação de jornal ou discutindo seus sentidos, na academia. E como não tenho encontrado interlocutores no mesmo tom, resolvi apelar para uma prática que reaprendi em meu séjour na França, no ano passado: flanar pela cidade. Sem Manduka, sem Modern, sem minhas amigas, sempre tão atarefadas, decidi pôr os pés no chão, o que me traz certa dor física, mas alegra a alma.

À proporção que os pés se sucedem nessa tensão muscular, situando o corpo entre o chão e o céu, e avanço pendular, num ritmo integrado à respiração, a alma começa seu próprio caminhar: pela memória, pela saudade, pelo desejo e outras pulsões essenciais. É um mecanismo que se inicia no físico e se estende ao patafísico. Em suas Confissões, Jean-Jacques Rousseau afirmou: “Não consigo meditar exceto quando caminho; se eu paro, não penso mais. Minha mente não avança sem meus pés.” Zuenir Ventura vai buscar os temas de suas crônicas em caminhadas pelo calçadão. Sai de casa vazio e volta repleto de assuntos. Sou parecido aos dois nesse sentido.

É uma forma de conversar sozinho, quase tão prazerosa quanto jogar conversa fora com meus interlocutores, através do copo, à mesa de bar. É igualmente uma forma de viver a cidade intensamente, nos detalhes, nas esquinas, ruelas e becos. O tal sentimento de déplacement, em que o deslocar físico nos desloca também o espírito, abrindo janelas de percepção, que do contrário permaneceriam fechadas ao dia. Olhar as pessoas à rua, entender a relação entre o boteco da esquina e a banca de jornal, perceber os sinais de tensão em certas áreas, mover-se ao ritmo da circulação da cidade e desbravar seus territórios. É também inventar itinerários, engolir o ar das ambiências e apreciar, como João do Rio, a paisagem urbana exuberante da velha Guanabara submersa em camadas de racionalismo, escondidas sob os escombros de demolições em nome do triunfo da razão. Vaguear ao movimento de desconstrução dos modernismos.

5 comentários:

ANNA disse...

Tenho, de uns anos para cá, sentido o exílio cada vez mais pesado.
Sinto imensa saudade deste jogar conversa fora com os estranhos,tão íntimos, que povoam a alma desta cidade a cada esquina,a cada mesa de bar.
O caminhar pelas ruas e olhar as pessoas e sorrir para elas e ouvir os barulhos do dia e respirar seus movimentos, me enchendo da vida, que mesmo emprestada, acalma e completa, tem me feito enorme falta.
Aproveite cada segundo das suas solidões, acompanhadas ou não, nesta terra que, apesar de tudo e com tudo, é sempre mágica.
Bom final de semana, abraços,
Anna Kaum.

A VIDA NUMA GOA disse...

Comigo dá-se o mesmo. Acredito mesmo que conhecer uma cidade é perder-se nela.
Outro dia perdi-me no Livramento.

E, diga, onde os elefantes? Lindos!

ipaco disse...

Anna, em que canto do mundo vc está? Bjs

ipaco disse...

Infelizmente, os elefantes foram apagados. Pintaram o muro numa cor vinho... Ficavam ali na Mena Barreto, à esquina da 19 de Fevereiro, em Botafogo. Eles me faziam viajar... Abs.

ANNA disse...

Meu querido, se a geografia for a dos Atlas dos bancos escolares, nem é assim tão distante, vivo numa minúscula cidade no interior de Minas, mas,se a geografia for a da alma,as estradas destas terras me levaram para anos luz da minha casa.
Carioca é assim mesmo, longe do sal, do samba e das pedras portuguesas, vive em eterno desterro.
Abraços e aproveite o restinho de Domingo!