O poeta Eucanaã Ferraz disse, num programa sobre o
Modernismo brasileiro na GNT se não me engano, que Manuel Bandeira, apesar de
não ter ido à Semana de 22, era uma espécie de poeta-referência dos
modernistas. Eu sempre achei a poesia de Bandeira moderna e maravilhosa. Também
a sua disposição de conversar e trocar com poetas das novas gerações, tornando-se
uma espécie de conselheiro e amigo, misturados. Venho agora de ler um fragmento
de uma entrevista inédita de Carlos Drummond de Andrade, que ficara guardada 28
anos nos arquivos pessoais da pesquisadora Maria Lucia do Pazo, que teve a
fortuna de morar no mesmo prédio da amante de Drummond, Lygia Fernandes, em
Ipanema.
Maria Lucia estava fazendo uma tese sobre o erotismo na
poesia de Drummond e o poeta não apenas deu a entrevista (em 1984), mas chegou
mesmo a procurá-la e propor a ela falar sobre os poemas do seu maravilhoso
livro O amor natural, na época inédito (só foi publicado após a morte do
poeta). Isso é um dado interessante, já que Drummond era tímido, quase recluso,
e não gostava de dar entrevista. Na conversa com a pesquisadora, publicada no
último fim de semana pela Ilustríssima, da Folha de S.Paulo, Drummond fala de
erotismo, psicanálise e menciona suas influências.
Não há exatamente qualquer informação nova e bombástica, mas
a entrevista mostra a sensibilidade e a inteligência de um poeta que se tornou unanimidade,
a ponto de hoje andar meio desaparecido em sua própria notoriedade: todos sabem
que é bom, mas ninguém mais o lê. Mas não deixo de sentir certo júbilo ao ler
que o poeta aponta Mario de Andrade e Manuel Bandeira como marcos de influência
na sua vida. Porém, de forma distinta. Diz ele: “Através dos modernistas
cheguei a Manuel Bandeira e Mário de Andrade, que foram, realmente, os dois
encontros literários mais importantes de minha vida.”
Mas o interessante é que ele distingue muito bem a
influência de ambos. Com Mario, Drummond traçou o caminho teórico e reflexivo
do ofício da poesia. Mario deu a ele os argumentos propositivos para se
libertar das formas fixas, como já vinha fazendo. Essas formas até então eram uma
espécie de fetiche, que confundia a forma poética com a própria poesia. Instigados
pela poesia de Bandeira, os modernistas destruíram isso e nos libertaram. Já a
influência de Bandeira sobre Drummond é de uma outra ordem. É no plano mesmo da
poesia, e não da forma, da teoria. O poeta mineiro diz na entrevista que “foi o
gosto da poesia de Bandeira, a delicadeza, o mistério dessa poesia que me
encantaram”. E, mais adiante, conclui: “A poesia do Mário nunca me influenciou.
A de Bandeira, sim.”
Num longo fragmento de entrevista (infelizmente não sou
assinante da Folha e, assim, não tive acesso à íntegra) dedicada ao erotismo e à
psicanálise (muito pertinente também a crítica a Reich que Drummond faz), no
fim, foram essas confissões de influência que mais me chamaram a atenção. Talvez
porque me identifique com Drummond. A poesia de Bandeira é, talvez, o marco da
poesia modernista brasileira. Bem mais que Mario ou Oswald, tão celebrados nos
tempos que correm. Porém, mais do que “modernista” é poesia de extrema
sensibilidade, delicadeza, mistério e competência. Bandeira era um poeta
completo. Por isso gostei da sacada do Eucanaã Ferraz de levar o poeta carioca ao
programa sobre a Semana de 22.
Visitando meu tio, o poeta Thiago de Mello, no interior da
floresta Amazônica, no início da década de 1990, fui acomodado em uma de suas
bibliotecas da velha casa do Porantim, em Barreirinha (AM). Lá dormi entre
livros raros, correspondência com grandes escritores e obras de arte de valor incalculável. Em
frente a retratos de Zé Lins do Rego, Bandeira, entre outros, uma mesa de
madeira nobre guardava os originais do livro em que o poeta trabalhava naquele
então. Havia ainda partes da tradução de poetas latino-americanos, velho
projeto do Thiago, que só se cumpriu ano passado. Me lembro de ter passado os
olhos em algumas das cartas do seu arquivo. Duas ficaram em minha memória: a de
Neruda, despedindo-se do amigo brasileiro com um poema brincalhão e amoroso, e
outra de Bandeira, na sua intensidade leve. Thiago teve a fortuna de conviver
intimamente com esses dois mestres. Aliás, o Manuel de Manduka é homenagem a
Bandeira, era padrinho do músico.
Encerro com este poema de Drummond, do Amor natural:
A língua lambe
A língua lambe as pétalas
vermelhas
da rosa pluriaberta; a língua
lavra
certo oculto botão, e vai
tecendo
lépidas variações de leves
ritmos.
E lambe, lambilonga,
lambilenta,
a licorina gruta cabeluda,
e, quanto mais lambente, mais
ativa,
atinge o céu do céu, entre
gemidos
entre gritos, balidos, e
rugidos
de leões na floresta,
enfurecidos.
2 comentários:
CONFRONTO
Bateu, Amor à porte da Loucura.
"Deixe-me entrar, pediu, sou teu irmão.
Só tu me limparás da lama escura
a que me conduziu a paixão"
A Loucura desdenha recebê-lo,
sabendo quanto o Amor vive de engano,
mas estarrece de surpresa ao vê-lo, de humano que era, assim tão inumano.
E exclama: "Entra correndo, o pouso é teu".
Mais que ninguém mereces habitar
minha casa infernal, feita de breu.
Enquanto me retiro, sem destino,
pois não sei de mais triste desatino
que este mal sem perdão, o mal de Amor
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
Auto-Retrato
Provinciano que nunca soube
Escolher bem uma gravata;
Pernambucano a quem repugna
A faca do pernambucano;
Poeta ruim que na arte da prosa
Envelheceu na infância da arte,
E até mesmo escrevendo crônicas
Ficou cronista de província;
Arquiteto falhado, músico
Falhado (engoliu um dia
Um piano, mas o teclado
Ficou de fora); sem família,
Religião ou filosofia;
Mal tendo a inquietação de espírito
Que vem do sobrenatural,
E em matéria de profissão
Um tísico profissional.
MANUEL BANDEIRA
Moça Linda Bem Tratada
Moça linda bem tratada,
Três séculos de família,
Burra como uma porta:
Um amor.
Grã-fino do despudor,
Esporte, ignorância e sexo,
Burro como uma porta:
Um coió.
Mulher gordaça, filó,
De ouro por todos os poros
Burra como uma porta:
Paciência...
Plutocrata sem consciência,
Nada porta, terremoto
Que a porta do pobre arromba:
Uma bomba.
MARIO DE ANDRADE
Falar mais o que? Abraços,Anna Kaum
Maravilha!
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