terça-feira, 10 de julho de 2012

Drummond, Bandeira e Mario


O poeta Eucanaã Ferraz disse, num programa sobre o Modernismo brasileiro na GNT se não me engano, que Manuel Bandeira, apesar de não ter ido à Semana de 22, era uma espécie de poeta-referência dos modernistas. Eu sempre achei a poesia de Bandeira moderna e maravilhosa. Também a sua disposição de conversar e trocar com poetas das novas gerações, tornando-se uma espécie de conselheiro e amigo, misturados. Venho agora de ler um fragmento de uma entrevista inédita de Carlos Drummond de Andrade, que ficara guardada 28 anos nos arquivos pessoais da pesquisadora Maria Lucia do Pazo, que teve a fortuna de morar no mesmo prédio da amante de Drummond, Lygia Fernandes, em Ipanema.

Maria Lucia estava fazendo uma tese sobre o erotismo na poesia de Drummond e o poeta não apenas deu a entrevista (em 1984), mas chegou mesmo a procurá-la e propor a ela falar sobre os poemas do seu maravilhoso livro O amor natural, na época inédito (só foi publicado após a morte do poeta). Isso é um dado interessante, já que Drummond era tímido, quase recluso, e não gostava de dar entrevista. Na conversa com a pesquisadora, publicada no último fim de semana pela Ilustríssima, da Folha de S.Paulo, Drummond fala de erotismo, psicanálise e menciona suas influências.

Não há exatamente qualquer informação nova e bombástica, mas a entrevista mostra a sensibilidade e a inteligência de um poeta que se tornou unanimidade, a ponto de hoje andar meio desaparecido em sua própria notoriedade: todos sabem que é bom, mas ninguém mais o lê. Mas não deixo de sentir certo júbilo ao ler que o poeta aponta Mario de Andrade e Manuel Bandeira como marcos de influência na sua vida. Porém, de forma distinta. Diz ele: “Através dos modernistas cheguei a Manuel Bandeira e Mário de Andrade, que foram, realmente, os dois encontros literários mais importantes de minha vida.” 



Mas o interessante é que ele distingue muito bem a influência de ambos. Com Mario, Drummond traçou o caminho teórico e reflexivo do ofício da poesia. Mario deu a ele os argumentos propositivos para se libertar das formas fixas, como já vinha fazendo. Essas formas até então eram uma espécie de fetiche, que confundia a forma poética com a própria poesia. Instigados pela poesia de Bandeira, os modernistas destruíram isso e nos libertaram. Já a influência de Bandeira sobre Drummond é de uma outra ordem. É no plano mesmo da poesia, e não da forma, da teoria. O poeta mineiro diz na entrevista que “foi o gosto da poesia de Bandeira, a delicadeza, o mistério dessa poesia que me encantaram”. E, mais adiante, conclui: “A poesia do Mário nunca me influenciou. A de Bandeira, sim.”

Num longo fragmento de entrevista (infelizmente não sou assinante da Folha e, assim, não tive acesso à íntegra) dedicada ao erotismo e à psicanálise (muito pertinente também a crítica a Reich que Drummond faz), no fim, foram essas confissões de influência que mais me chamaram a atenção. Talvez porque me identifique com Drummond. A poesia de Bandeira é, talvez, o marco da poesia modernista brasileira. Bem mais que Mario ou Oswald, tão celebrados nos tempos que correm. Porém, mais do que “modernista” é poesia de extrema sensibilidade, delicadeza, mistério e competência. Bandeira era um poeta completo. Por isso gostei da sacada do Eucanaã Ferraz de levar o poeta carioca ao programa sobre a Semana de 22.

Visitando meu tio, o poeta Thiago de Mello, no interior da floresta Amazônica, no início da década de 1990, fui acomodado em uma de suas bibliotecas da velha casa do Porantim, em Barreirinha (AM). Lá dormi entre livros raros, correspondência com grandes escritores e obras de arte de valor incalculável. Em frente a retratos de Zé Lins do Rego, Bandeira, entre outros, uma mesa de madeira nobre guardava os originais do livro em que o poeta trabalhava naquele então. Havia ainda partes da tradução de poetas latino-americanos, velho projeto do Thiago, que só se cumpriu ano passado. Me lembro de ter passado os olhos em algumas das cartas do seu arquivo. Duas ficaram em minha memória: a de Neruda, despedindo-se do amigo brasileiro com um poema brincalhão e amoroso, e outra de Bandeira, na sua intensidade leve. Thiago teve a fortuna de conviver intimamente com esses dois mestres. Aliás, o Manuel de Manduka é homenagem a Bandeira, era padrinho do músico.

Encerro com este poema de Drummond, do Amor natural:

A língua lambe

A língua lambe as pétalas vermelhas
da rosa pluriaberta; a língua lavra
certo oculto botão, e vai tecendo
lépidas variações de leves ritmos.

E lambe, lambilonga, lambilenta,
a licorina gruta cabeluda,
e, quanto mais lambente, mais ativa,
atinge o céu do céu, entre gemidos
entre gritos, balidos, e rugidos
de leões na floresta, enfurecidos.

2 comentários:

ANNA disse...

CONFRONTO

Bateu, Amor à porte da Loucura.
"Deixe-me entrar, pediu, sou teu irmão.
Só tu me limparás da lama escura
a que me conduziu a paixão"

A Loucura desdenha recebê-lo,
sabendo quanto o Amor vive de engano,
mas estarrece de surpresa ao vê-lo, de humano que era, assim tão inumano.

E exclama: "Entra correndo, o pouso é teu".
Mais que ninguém mereces habitar
minha casa infernal, feita de breu.

Enquanto me retiro, sem destino,
pois não sei de mais triste desatino
que este mal sem perdão, o mal de Amor
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE


Auto-Retrato

Provinciano que nunca soube
Escolher bem uma gravata;
Pernambucano a quem repugna
A faca do pernambucano;
Poeta ruim que na arte da prosa
Envelheceu na infância da arte,
E até mesmo escrevendo crônicas
Ficou cronista de província;
Arquiteto falhado, músico
Falhado (engoliu um dia
Um piano, mas o teclado
Ficou de fora); sem família,
Religião ou filosofia;
Mal tendo a inquietação de espírito
Que vem do sobrenatural,
E em matéria de profissão
Um tísico profissional.

MANUEL BANDEIRA



Moça Linda Bem Tratada

Moça linda bem tratada,
Três séculos de família,
Burra como uma porta:
Um amor.

Grã-fino do despudor,
Esporte, ignorância e sexo,
Burro como uma porta:
Um coió.

Mulher gordaça, filó,
De ouro por todos os poros
Burra como uma porta:
Paciência...

Plutocrata sem consciência,
Nada porta, terremoto
Que a porta do pobre arromba:
Uma bomba.
MARIO DE ANDRADE

Falar mais o que? Abraços,Anna Kaum

ipaco disse...

Maravilha!