domingo, 30 de agosto de 2009

Marimbondos de fogo

Amigos, ando enrolado com um trabalho extra, mas abro esse parêntesis rápido para especular sobre a atual crise moral e ética. A partir da semana que vem, o blog volta à normalidade dos posts. Abraços.



Outro dia recebi um e-mail me convidando a endossar um abaixo-assinado para tirar José Sarney da Academia Brasileira de Letras. Recusei. Ora, sem negar que por lá passaram e estão grandes figuras de nossa literatura e nossas artes, a ABL — ao contrário do que pretendeu Machado ao fundá-la —, sempre se prestou, como instituição, a esse tipo de homenagem sem sentido e sem valor. Portanto, na minha humilde opinião, Ribamar tem o seu lugar por lá. É um meio em que ele se move bem e com desenvoltura, sobretudo no chá das cinco. Não quero aqui desmerecer aqueles todos que estão na Academia por merecimento de suas artes, como o próprio Machado, Zé Lins, Guimarães Rosa e, mais recentemente, Nelson Pereira dos Santos, pois estas considerações são de ordem filosófica e não estética e, ademais, nem mesmo li Os marimbondos de fogo ou outra obra qualquer de Ribamar, para poder tecer qualquer avaliação de ordem estética.

Acho mesmo inclusive que toda essa onda contra o Sarney, estimulada pela mídia, merece uma reflexão um tanto mais profunda. Não quero defender a cultura do coronelismo, o nepotismo e todas as falcatruas do nosso nobre senador e seus descendentes. Mas, venhamos e convenhamos, é para no mínimo desconfiar, quando as pedras são atiradas, com todo o rancor, por figuras nobres, como o neto de ACM, o filho de Cesar Maia, entre outros lábaros que tremulam no Congresso Nacional. De repente, esses aí se tornam defensores da ética. Arthur Vigílio, uma vez revelado o telhado de vidro, sumiu da mídia. E ademais muito se conta sobre ele no Amazonas, coisas muito além de dar emprego a parentes.

Quero assinar um manifesto contra esse estado de coisas, mas não quero mais ser usado como massa de manobra numa luta que, para mim, é obviamente eleitoral e não ética, como se apreoga.

Acho que, pela primeira vez, algumas instâncias da República começam a funcionar. O Ministério Público, a Receita, setores da Polícia Federal, juízes de primeira instância, advogados comprometicos com o amadurecimento da democracia, entre outros. Daí as discussões riquíssimas na academia, nos cursos de história, ciência política, sociologia, antropologia, direito etc. Daí também a profusão de denúncias e escândalos. Só que uns são mais incensados do que outros pelos jornais, segundo interesses. A comoção contra a prisão da dona da Daslu, por ter aparecido algemada, e outros freqüentadores do Country Club, é um exemplo. Imediatamente, o Supremo manda soltar e brada contra o excesso da Polícia Federal e o uso de algemas, quando estas são uma determinação da lei.

Ou seja, quando o sistema democrático começa a estimular, no seu processo de amadurecimento, o surgimento, nas instâncias primárias das instituições da República, de ações antes impensáveis contra poderosos e a repugnante elite desse país, os caras lá de cima reagem. No Executivo, no Congresso e no Judiciário. Mas também na mídia, que dá eco a essas indignações e voz a determinados pontos de vista. Por isso, se for pra assinar um manifesto, este deve ser, a meu ver, em defesa desses profissionais republicanos que estão fazendo o seu trabalho de investigar, denunciar e processar essa cambada que aí está.

A questão não é mais tirar o Sarney, como tiramos o Collor, Renan, ACM e outros, e deixar a estrutura apodrecida dessas instituições intacta. É preciso uma profunda reforma política, abrangendo os três poderes, aumentando a representatividade dos diversos segmentos sociais, dos estados e municípios, impedir que qualquer governante fique refém de acordos e conchavos para poder implantar as políticas pelas quais foi eleito. Só que isso é mais complexo. Dá mais trabalho. É mais fácil e transbordante do ponto de vista emocional jogar pedra no bandido da vez. Nos sentimos muito bem quando ele vai pra casa, aparentemente, com o rabo entre as pernas. Mas o sistema permanece mais fortalecido na sua perversidade.

domingo, 9 de agosto de 2009

Pegadinha na Praça da Bandeira


Katia, do Aconchego, ainda ajeitando a casa recém-aberta do outro lado da rua

Outro dia folheava uma matéira no Rio Show, do Globo, sobre os bares da Praça da Bandeira e, quando a li a legenda de uma das fotos, pensei: "putz, erraram o bar". É que a foto era do Aconchego Carioca, boteco nunca suficientemente louvado nas páginas virtuais deste Pendura Essa, mas o box da matéria trazia no título: "Bar da Frente"... Porém ao continuar a ler a matéria vi que o engano era meu, ou melhor, que as meninas do Aconchego, Katia e Rosa, resolveram dar um nó na minha cabeça e mudaram o bar de lado na calçada e entregaram as chaves do ex-Aconchego à Valéria e à Mariana, mãe e filha, que abriram o Bar da Frente no lugar, mantendo a mesma parede grafitada e o clima de aconchego. Parecia coisa de twilight zone ou pegadinha de bêbado, sacumé?


O garçom Maurício, abraçado por Rosa: aconchego

Ontem, queridos amigos, fui tirar isso tudo a limpo. E, de fato, Katia e Rosa, cansadas de fila na porta, pegaram o sobrado em frente e ampliaram o espaço do Aconchego e repassaram a velha casa à dupla Valéria-Mariana, que já trabalhava com elas tocando a cozinha do Aconchego no Cinemathèque, em Botafogo, um esquema inteligente que as meninas costuraram com o Leo Feijó. Mas o pequenino Do outro lado, orgulhoso, está oferecendo cardápio próprio, com destaque para os sanduíches especiais e os pasteizinhos com recheios diversos e bastante temperados. Em comum, os dois botecos dividem os divinos bolinhos de feijoada de Katia e Rosa e eventuais contrabandos de quitutes levados de um lado para o outro da rua, já que são todos da mesma família espiritual. A oferta de cerveja continua diversificada, nas duas casas, uma virtude considerável, diante do monopólio que a AmBev impõe aos pequenos comerciantes da cidade (e que está agora lhe custando uma multa astronômica por concorrência desleal).


A turma da cozinha do Aconchego: fábrica de maravilhas

Também tive a oportunidade de voltar a experimentar o croquelete do Petit Paullette, petisco fruto da criativa mente de meu amigo Paulo Barbosa, o Paulette. Um verdadeiro empreendedor institivo, que conhece tudo do ramo. Nenhum MBA é capaz de ensinar o que ele sabe, fruto da observação empírica. Não posso ainda revelar os detalhes, mas ele e o Fernando, do Enchendo Lingüiça, que acabou de receber o prêmio de melhor botequim da cidade, no festival organizado pelo jornal O Dia, estão armando uma parceria. Vem coisa boa por aí.


O salão do Aconchego, com clima de cidade do interior

Aliás, ontem também visitei o Enchendo Lingüiça pela primeira vez desde que o Fernando abriu a fábrica de lingüiça, em outro bairro bucólico da cidade, o Grajaú. Não pude deixar de provar o joelho de porco, que gira na televisão de cachorro, convidando seres caninos e humanos ao banquete. Também experimentei a lingüiça (êpa!) de cordeiro com hortelã. Servida com pãezinhos passados na chapa com manteiga, excelente acompanhamento para a cerveja gelada, que, no Enchendo, sai na tulipa de chope ou na ampola mofada da penungem de gelo.


A sala de fumantes do Aconchego, com meus amigos Paulo Mussoi e Cesinha Bayma (à esquerda) numa mesa de jornalistas: aqui não é São Paulo

Foi muito bom rever os amigos queridos depois de alguns meses de secca. Como sempre fui obrigado a pôr o pé na jaca. Os dois.


O Bar da Frente lotado, diante do Aconchego, do outro lado da rua

Mas, voltando à matéria sobre a Praça da Bandeira, sempre me dá um certo calafrio quando vejo alardeado por aí, em titulares de jornal, o anúnco de novos pólos gastronômicos e coisa e tal. Certamente a propraganda é boa para os negócios dos meus amigos e não serei egoísta a querer preservar as coisas só para mim e os meus. Mas, às vezes, a pressa da notícia afeta o processo "orgânico" de crescimento de uma área, acelerando sua degradação, atraindo para ela especuladores interessados em abrir uma casa para logo depois fechar e embolsar o lucro, sem pensar no bairro, na qualidade de vida e, sobretudo, nos moradores do lugar. Construtoras, imobiliárias, redes e cadeias de restaurantes, shoppings etc.


Fernando, do Enchendo Lingüiça, com a televisão de cachorro ao fundo: joelho de porco no Grajaú

De repente, o bairro se "valoriza", isto é, sofre um processo agudo de aburguesamento, e muitos desavisados ficam felizes e orgulhosos. Mas aí os aluguéis saltam para níveis estratosféricos e os antigos moradores são expulsos pelos altos preços de tudo e, no fim, forma-se um outro bairro, que foi fagocitando o antigo, cheio de espigões e sem personalidade, que os novos moradores, atraídos pela propaganda, ostentam como sinal de modernidade. Um efeito Barra da tijuca, um bairro que não tem esquina e onde não se anda a pé. Vejam bem, meus amigos, não estou aqui defendendo a manutenção dessas áreas da cidade como museus de um modo de vida que foi desaparecendo em meio à especulação imobiliária, sucumbindo ao desenvolvimento desordenado, aos planejadores urbanos que, prepotentes, não ouvem os moradores ao criar seus projetos etc. Apenas gostaria de ver as coisas tomarem seu rumo próprio, sem a necessidade de um acelerador de partículas, que é a mídia.


A boemia sempre foi uma vocação da Praça da Bandeira

Além do mais, a noção que a burguesia tem de boemia é outra. São as boates e bares sofisticados, inacessíveis ao cidadão comum, como o tal do Londre, louvado numa matéria assombrosa do último número da Revista Programa, no Jornal do Brasil. A reportagem destaca, como uma das virtudes do bar, o preço da coca-cola light: R$ 8,50. Sim, meus amigos, repito aqui para que vejam que não foi erro de digitação: R$ 8,50. O bar é freqüentado ainda por socialites e celebridades que não pagam nada porque, segundo o dono, agregam valor à casa. São os freqüentadores desses lugares que clamam por choque de ordem, cujos excesso já fizeram fechar uns dois ou três bares e botecos aqui em Botafogo. Sem falar que as multas por mesinhas nas calçadas, que chegam a R$ 20 mil em alguns casos, estão enchendo o bolso de muito fiscal da prefeitura. Tenho a impressão que o ideal de cidade para esses administradores são as ruas vazias e os shoppings lotados (fico pensando que atrocidades não trará o Plano Diretor da cidade que está para ser votado na Câmara).

E, ademais, estamos falando da Praça da Bandeira, um dos bairros mais interessantes do Rio de Janeiro, ainda razoavelmente preservado em seu casario do início do século passado e pouco conhecido de muita gente, que pensa que a Praça da Bandeira se resume àquele trecho apertado, cortado ao meio pela Radial Oeste, quando passam apressados rumo ao Maracanã. É fato que as ruas do bairro, que me lembram tanto as do meu pedaço bucólico de Botafogo, vivem uma efervescência, que a reportagem do Rio Show percebeu. Só que a Praça da Bandeira, como de resto a Tijuca, o Maracanã e São Cristóvão, sempre foi assim. Para quem gosta de boemia e de Rio de Janeiro, a matéria não traz novidade, exceto a pegadinha que o Aconchego pregou neste pobre e desvalido escriba, ao mudar de lado da calçada.

sábado, 1 de agosto de 2009

Lembrança de um sonho de antes de nascer



Querida amiga, outro dia pensei no sonho que atravessou sua alma uma noite dessas em que nos estiramos fatigados no jardim, depois de brincarmos eternamente de amor. Foi naquele verão pré-histórico, lembra? Me lembro que percebi sua inquietação ainda enquanto estava submersa em sono profundo, o corpo aninhado, arrepiado por leves tremores ocasionais. De repente, num zás, despertou já outra pessoa. Deixara o casulo. Tudo em sua vida havia se transformado para sempre. Era como se o sonho tivesse se estendido à vigília, invadido à revelia, insolente, revelando a letargia em que vivera até então. Vi que descobria, ao abrir os olhos, as asas enormes e ainda viscosas do orvalho onírico. Elas sempre estiveram lá, mas escondidas no dia-a-dia das coisinhas triviais ou inalcançáveis nos desejos grandiosos e heróicos. Sim, querida amiga, fui testemunha de seu despertar de assombro do sonho da vida e de seu esforço para esconder a perplexidade, ao ver-se ali, no universo dos adultos, ao lado do homem nu que chamava seu. Era a infância vivida desde antes de nascer que morria ali, naquele acordar. E embora me chamasse de capitão Ulisses e estendesse a mão, enquanto arrumava as coisas para a grande jornada, seus olhos já diziam adeus. Era sua a odisséia. E eu, querida amiga, da terceira margem do rio, ainda hoje aceno o meu chapéu ao teu navio.