domingo, 23 de janeiro de 2011

Relativizando o bullying


Há uma briga no campo científico e filosófico que opõe nos extremos, de um lado, os defensores das chamadas ciências duras (êpa!), em que os fenômenos naturais são interpretados e analisados, estabelecendo-se leis e conceitos; e, de outro, pensadores e cientistas sociais que vêem os fenômenos, seja qual forem, como o resultado de um constructo, isto é, de uma invenção social. Numa ponta e outra há radicalismo: alguns cientistas e filósofos acham que todos os fenômenos têm uma base natural e portanto menosprezam seu aspecto interpretativo, isto é, a forma como as diversas sociedades humanas se apropriam deles em sua cultura, em seu imaginário, por assim dizer, e mesclam o evento social à realidade natural, confundindo simbioticamente a interpretação do fenômeno com o próprio fenômeno. De outro lado, há aqueles que acham que tudo, absolutamente tudo na vida, é uma construção social e, portanto, não existe fenômeno natural propriamente dito, sem uma base simbólica que o sustente.

Eu penso que os fenômenos naturais estão aí, por si só, mas são interpretados e traduzidos socialmente. Além disso, há também aqueles que são absolutamente construídos, isto é, não existem enquanto força natural per se. Então, por exemplo, se uma maçã cai de uma árvore na cabeça de um cidadão de uma sociedade como a nossa, trata-se, para muitos, da lei da natureza exercendo sua força: a gravidade. Porém, se este homem sobre cuja cabeça cai a maçã for, por exemplo, um nativo zande, a queda da maçã será interpretada como fruto de bruxaria ou uma feitiçaria contra ele, pois não há na sua sociedade a idéia de “mera coincidência” para explicar a queda da maçã no exato momento em que ele passava (mas há, por outro lado, uma especialização complexa do pensamento mágico, distinguindo feitiçaria de bruxaria, por exemplo). Evidentemente, é possível argumentar que, no primeiro caso, trata-se de uma lei natural, inquestionável e incontornável, ao passo que, no segundo, é uma “superstição” que não anula a existência da primeira lei.

A briga está exatamente aí: para alguns cientistas sociais, a lei da natureza, no caso, a queda da maçã sobre a cabeça de alguém, independentemente de sua verdade científica, é igualmente uma construção social da realidade, uma interpretação que vai colada ao fenômeno natural, e, portanto, também está no mesmo nível da explicação que os azande dão para o ocorrido. Quando a coisa é colocada nesse nível, cria-se um problema epistemológico sério, pois há aí aparentemente uma relativização de leis naturais, independentemente da natureza absoluta de suas regras. A gravidade existe para além de qualquer interpretação, mas ela só pode se tornar inteligível dentro do mundo simbólico das sociedades e, assim, terá também um viés interpretativo que adere ao fato natural.

Afirmar isso é perigoso, pois pode passar a impressão de que se está querendo relativizar leis naturais que, por si só, não se prestam a esse jogo. Além disso, há o risco de mergulhar numa relativização interminável, em que tudo é diluído ante a constatação que tudo é, afinal, uma interpretação. Embora as leis da física, dos fenômenos naturais, enfim, estejam aí por si só, independentemente de serem interpretados como gravidade ou feitiçaria. Outros eventos, de cunho mais explicitamente social, podem revelar o quanto as sociedades vivem de constructos simbólicos (me lembro, por exemplo, de um lindo texto de antropóloga Soraya Silveira Simões sobre o sentido de rito de passagem do réveillon, que dá à passagem da meia-noite um significado tão extraordinário e mágico quanto arbitrário).

Ultimamente, por exemplo, fala-se muito em bullying, para descrever um fenômeno relativamente antigo, como nos mostra a literatura e os filmes, nos colégios, na vizinhança, na rua. Passei minha adolescência em colégio público aprendendo a evitar a violência física e psicológica dos chamados valentões (me lembro, nos anos 70, em Ipanema, a figura do Brau, um valentão que saía à rua em busca de briga). Sair incólume exigia estratégias e disciplina e, sobretudo, forçava a busca de uma sociabilidade, em que o grupo acabava por formar um corpo protetor, onde também se aprendiam os limites e a impotência da lei. Percebendo a coisa por este ângulo, o fenômeno da violência entre adolescentes tem, igualmente, um sentido social. Evidentemente, sempre houve exageros, dramas e até mesmo tragédias, como resultado disso e de seu aspecto verdadeiramente patológico (afinal, incendiar mendigos e índios e agredir prostitutas é um outro nível de delinqüência juvenil, decorrente sobretudo da falta de empatia com o outro e, ao meu ver, resultado do isolamento defensivo dos grupos sociais fechados em si mesmos).

Mas voltando ao bullying, cria-se uma palavra para interpretar e descrever o antigo fenômeno. E, com isso, cria-se também uma nova patologia social, cujos sintomas são descritos como se fossem uma novidade, coisa que nos chegou agora, importada da TV. E lá vão pais, autoridades, psicólogos e outros especialistas tratar do velho fenômeno, agora, renomeado e sintetizado numa nova palavra, não à toa, estrangeira, apresentando-o como um problema novo de nosso tempo. Aumenta-se o controle nas escolas, constroem-se mais e mais condomínios fechados e exclusivos, e isolam-se as crianças e adolescentes da rua, o espaço necessário para o desenvolvimento de uma socialização urbana, de um aprendizado fundamental que é o de convivência com o outro simultaneamente desconhecido e próximo.

Algumas sociedades sequer têm a noção de adolescência. Nelas, a criança, após ritos de passagem relativamente complexos, muitas vezes violentos e profundos de significados, torna-se adulto no meio social. Em algumas sociedades indígenas, por exemplo, meninos e meninas ficam reclusos por um período de iniciação, quando aprendem respectivamente as coisas de homens e de mulheres, para depois, num grande rito, serem reconhecidos pelo grupo, e por si próprios, como tais. Na nossa sociedade, há a adolescência, esse longo e tortuoso caminho de aprendizado, em que paulatinamente aprende-se a viver como adulto na sociedade.

Assim, ao contrário da lei da gravidade e outros fenômenos físicos da natureza, adolescência e bullying são construções estritamente sociais. O que não diminui sua força como verdade que se impõe. Pelo contrário, são termos apropriados e introjetados tão absolutamente que podemos jurar de pés juntos que fazem parte da “natureza”, e por isso dizemos: “É natural que assim seja.

O grande barato disso tudo é poder ver como cada grupo humano cria e recria sentidos para as coisas que o cerca, revelando uma possibilidade infinita de invenção e criatividade. Ao mesmo tempo, ao colocar as coisas nesses termos, tiramos dela o seu caráter indiscutível, irreversível e absoluto — esvaziamos, por assim dizer, sua “natureza” —, o que também amplia o campo de possibilidades humanas de transformação e aprendizado. Mas isso só é possível no contato com o outro, na diversidade, na compreensão de que não somos o centro do universo.

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