Amigos, reproduzo abaixo minha resenha, publicada hoje no Prosa & Verso, o suplemento literário do Globo, sobre a bela etnografia que meu amigo Lenin Pires fez sobre os camelôs que trabalham nos trens da Central do Brasil. A foto acima é do autor, de um dos vendedores ambulantes.
Quando
decidiu tomar como objeto de sua dissertação de mestrado o comércio
informal de ambulantes nos trens que ligam as zonas Oeste e Norte e a
região metropolitana fluminense à Central do Brasil, o antropólogo Lenin
Pires se viu confrontado pela expressão “esculacho”, que, por seu poder
de iluminar certa realidade social, se tornou um guia condutor de sua
reflexão. Foi em 2003, durante uma reunião entre camelôs que se
organizavam para negociar com a Supervia o que consideravam ser uma
espécie de legalização de sua atividade nos trens e estações, e, assim,
evitar o “derrame", isto é, a tomada de seus produtos por agentes de
segurança.
Na reunião, diz
Pires, “um camelô, em sua expressão cansada, olhar cabisbaixo, comentou
baixinho com um colega: ‘O derrame eu até entendo. O derrame é do jogo,
tudo bem. O problema é o esculacho’”. No dizer antropológico, derrame e
esculacho são categorias nativas, expressões do grupo estudado que
qualificam de forma clara os limites morais da realidade que vivem. Mas,
diferentemente de derrame, esculacho, no sentido dado pelas pessoas
pesquisadas, descortina um sistema de relações e valores. Esculacho é
uma forma intolerável de desrespeito, desconsideração e negação do
outro, que se situa no limiar da exclusão social. Extrapola, portanto, a
regra do jogo, e entra no campo do insulto moral, pois, além de
submeter o ator à ordem já desigual, ainda o humilha.
No
prólogo, o autor dá um outro exemplo de esculacho, dessa vez coletivo,
com consequências devastadoras. Pouco antes das 8h de uma manhã de
agosto de 1996, quando o sistema ferroviário era administrado pela
Companhia Estadual de Trens Urbanos (Flumitrens), a estação do Engenho
de Dentro estava lotada: as composições, mais uma vez, rodavam com
atraso. Situação que não apenas trazia o desconforto da espera, enquanto
a plataforma enchia cada vez mais, mas se estendia, em suas
consequências, ao repertório de explicações ao qual os usuários se
veriam obrigados a recorrer para justificar no trabalho o atraso.
Mas
como o que é ruim sempre pode piorar, a notícia chegou pelo boca a boca
e tomou conta da plataforma: um outro trem, que seguia da Central do
Brasil para Deodoro, descarrilara e todos os ramais de acesso ao Centro
do Rio estavam bloqueados, afetando cerca de 400 mil pessoas. Por volta
das 8h30m, em meio à tensão crescente, um funcionário da Flumitrens
informa pelo sistema de som da estação de Engenho de Dentro: “Atenção
senhores passageiros, a Flumitrens informa: o trem não tem condições de
continuar. Vocês vão ter que se virar para conseguir condução.”
Tomadas
como um insulto, as palavras do funcionário da Flumitrens desencadearam
um dos maiores quebra-quebras da cidade. Trens, plataformas,
bilheterias e trilhos foram destruídos numa onda de fúria que só não
acabou no linchamento de funcionários, porque eles se esconderam ou
fugiram. O caos durou cerca de uma hora e só foi interrompido com a
chegada da tropa de choque da Polícia Militar. Moral da história:
esculhamba, mas não esculacha.
É
por meio de categorias nativas como esculacha que o antropólogo tira da
sombra a realidade dos camelôs que circulam nos trens da Central,
vendendo todo tipo de mercadoria. Ele descreve e analisa suas
estratégias para sobreviver, as formas como narram o drama de seu
trabalho, as várias identidades que assumem ao longo da jornada e,
sobretudo, como se relacionam com a Supervia.
Durante
anos, Pires percorreu quase diariamente os trens entre o subúrbio
carioca e a Central do Brasil, focando seu olhar na prática dos
vendedores ambulantes. Isso permitiu que ele discutisse uma série de
questões em torno da informalidade sem se restringir ao cumprimento da
lei e das normas. Com isso, ele enriqueceu uma reflexão importante,
sobretudo nesses tempos de choque de ordem, deslocando o problema para
além da legalidade. Ao descrever o ritual diário desses ambulantes em
sua relação com os vários níveis de autoridades e com os passageiros, o
antropólogo lançou luz sobre velhos problemas da sociedade brasileira,
como desigualdade social, informalidade, flexibilização de regras,
jeitinho, entre outras formas peculiares de administração de conflitos.
Pires
também apresenta no livro uma reflexão epistemológica importante sobre a
antropologia urbana brasileira, ao descrever sua formação, ou melhor,
sua “conversão” de sindicalista em cientista social, contrastando os
ritos da militância sindical com aqueles da academia no que se refere à
realização de pesquisa científica. Esse processo de aguda reflexividade
permitiu ao antropólogo olhar por trás dos estereótipos.
Além
disso, como pesquisador associado ao Núcleo Fluminense de Estudos e
Pesquisa (Nufep), da Universidade Federal Fluminense — coordenado pelo
professor Roberto Kant de Lima —, Pires faz parte de uma geração de
pesquisadores urbanos, que se caracteriza pela ênfase no trabalho de
campo.
Fiel a essa linhagem,
Pires trabalha com distintas matrizes teóricas para tratar, de forma
competente, a complexidade dos problemas sugeridos pela etnografia.
Talvez essa seja uma das marcas mais criativas da antropologia urbana
brasileira: não ter o pudor de usar variados instrumentos e métodos para
trabalhar os problemas que o campo sugere. Segue-se, assim, um caminho
alternativo ao de certo formalismo, que, por solene deferência
ideológica, busca encaixar a realidade empírica em uma lógica rígida,
definida a priori.
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