Sempre que dirijo estas linhas a você, um outro você se insinua e torna tudo infinito.
Perco então o sentido estrito que a desenha em mim e em vez de engrandecer a narrativa,
empobreço-a, perdido nessa polifonia que nivela todas numa única mesma. Assim,
diluída em sua inteireza, você se torna um resumo precário. Não a encontro mais
em meu foco e seu rosto ganha feições irreconhecíveis, evocações imprecisas.
Essa outra voz se impõe, puxada por alguma associação que as une, você e ela. Talvez,
o mesmo êxtase ou a culpa cruel que ele provoca. A voracidade, sem fome, que esquece
o sabor e devora a vida. Só sei que esse ser intruso interfere no conteúdo da
frase, altera adjetivos e impõe verbos solitariamente intransitivos e impessoais.
Reina soberano no texto. E quando a fragmentação já contamina os parágrafos, um
terceiro outro se soma à dupla inicial; e um quarto; um quinto... E, pronto, você
é uma legião.
De modo que, nas esquinas das frases, mesmo de mãos dadas, me encontro e me perco em
você. Mas, seja quem for o destinatário, querida amiga, se lhe escrevo é porque
o tempo é curto. Há, portanto, urgência nestas linhas, ainda que não inteiramente
suas. Não sei bem onde é o incêndio. Sinto-o perto e me aflijo. Tento escapar
desse campo onírico, onde o enredo, cheio de desejo e fúria, se solta
indomável. Sua felicidade, porém, não se desfruta. Só é possível vazia de
sentidos, pois engloba tudo, ao mesmo tempo em que é nada.
Mas não cabe a Quixote desafiar a razão? Então, sob o sortilégio do discurso épico,
construo a felicidade irreal e só temo a mediocridade. Pois é esta que, numa dialética
perversa, torna a exuberância possível, enquanto se impõe como preço a pagar. Fadado
ao infortúnio da insignificância, mais e mais mergulho no fulgor fantasioso, tristemente
radiante em minha alienação. E, após séculos na floresta, desenvolvo o gosto
por cipós e igarapés. Aprendo a navegar em rios perigosos, olhando as estrelas,
onde se deita, querida amiga, seu corpo perfeito e intocável.
No entanto, à medida que o fogo da vida devasta as ramagens inventadas, me aproximo do fim do sonho. É a realidade
que me chama. Às vezes, traz a conta de tantos moinhos destruídos: dores no
corpo, limites, idade. Mas é sempre generosa ao se pôr, linda ou feia, ao alcance
da mão. Sem saber direito como respirar nesse mundo feito de tanta vida, vou me
desamarrando de impossibilidades maravilhosas. E troco o rosto indefinido, múltiplo,
por seus olhos, querida amiga, que me fitam pela primeira vez.
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