sábado, 11 de agosto de 2012

Identidade, boemia e botequim

Amigos, reproduzo abaixo um artigo publicado na edição de hoje do caderno literário do Globo. O Prosa & Verso, após o redesenho do jornal, passou a se chamar apenas Prosa. A última página, porém, ganhou o nome de Verso, onde, com seu formato fixo, apresentará sempre artigos que coloquem em evidência o contraste de ideias. A foto é de meu mano Custódio Coimbra, um belo retrato da Casa da Cachaça, na Lapa. O Custódio tem de fato alma de gato. Toda vez que ele vai fotografar um botequim — e em nossa história profissional foram centenas deles desde os primórdios do Rio Botequim à redação do Globo  — os gatos aparecem. É assomborsamente sobrenatural.



O pé-sujo recusa a saideira
Paulo Thiago de Mello

Em mais um capítulo na história de transformações dos botequins cariocas, boemia da cidade tem hoje múltiplos espaços de representação

Em um debate sobre a língua portuguesa, no contexto da unificação ortográfica, Mia Couto afirmou que “as identidades são transitórias e precárias. O problema é que elas são vividas como definitivas e eternas”. Os sucessivos ciclos de desenvolvimento urbano do Rio dão pertinência à afirmação do escritor moçambicano. Variados sonhos de cidade e ideais de civilização se chocam na arena pública, entre forças que buscam renovação e outras que defendem a preservação de patrimônios intangíveis. A cidade, como a língua, se transforma invariavelmente, o dia a dia muda e, com ele, as identidades urbanas. Mas como estas são vividas como absolutas nem sempre os processos são perceptíveis.

Observe-se o exemplo do botequim. Surgido na belle époque carioca, no início do século XX, quando o Rio se transformava em centro cosmopolita, esse tipo de comércio, oriundo das boticas e armazéns, funcionava como um refúgio para a massa operária, efetiva ou potencial, que se aglomerava na cidade em busca de oportunidade. Era o tempo do triunfo do racionalismo urbano, baseado no modernismo de Le Corbusier, e tendo como modelo a Paris do Barão Haussmann. O Rio industrializava-se e precisava de mão de obra qualificada.

Nesse contexto, o botequim rapidamente passou a ser visto como um desvio no caminho entre o lar e o trabalho. Nele, o trabalhador escapava da rígida hierarquia das fábricas, com seus chefes, capatazes, gerentes e diretores, e também de suas responsabilidades como provedor do lar. Muitas vezes, o dinheiro da feira ficava no balcão da taverna, para desespero da mulher. As instituições logo trataram de enfrentar o assunto, criminalizando o ócio e a malandragem. A igreja condenava moralmente; a medicina alertava para o alcoolismo como doença social; e a polícia reprimia.

Mas, ao mesmo tempo, ali era um dos poucos espaços onde a classe trabalhadora e a população pobre podiam estabelecer relações menos desiguais, que fugiam à rígida e excludente hierarquia social. Afirmava-se ali um sentido de boemia que logo atrairia segmentos das camadas médias da população. Assim, o botequim passaria a ser não só lugar de malandros, ociosos e alcoólicos, mas também de sambistas, poetas, jornalistas, entre outros. Surgia uma outra identidade para o botequim, como espaço de “liberdade”, embora cheio de regras e etiquetas, e de expressão cultural.

Na segunda metade da década de 1990, o ex-prefeito Luiz Paulo Conde lançou uma série de livros para enaltecer instituições vistas por ele como patrimônios culturais do Rio. Lançou edições sobre igrejas e sebos, um catálogo de estilos arquitetônicos da cidade e um guia de botequins. Os três primeiros desapareceram em solenidades e salamaleques palacianos. O último surpreendeu pela repercussão. O “Rio Botequim”, ao tirar o bar das esquinas obscuras e páginas policiais dos jornais, lançou luz sobre a importância cultural desses estabelecimentos para certa identidade carioca.

A partir de então, a ideia positiva do botequim atenuou a má fama do bar como espaço de desvio, ainda que esta representação perdure. Os jornais criaram colunas especializadas; chefs renomados passaram a valorizar a gastronomia popular dessas casas; surgiram especialistas no assunto; criaram-se concursos de melhores botequins, garçons e chope; e o tema até virou assunto acadêmico, com monografias em várias disciplinas.

Mas talvez o sinal mais contundente desse processo tenha sido a transformação do bar propriamente dito, por meio de uma profissionalização do serviço. As empresas familiares dos velhos botequins estão sendo substituídas por sócios investidores, que contratam chefs, gerentes, relações públicas e assessores de imprensa, e apostam no ramo em meio à onda de valorização do botequim. Nos últimos anos, surgiram redes e bares modernos, que nada têm a ver com os botequins originais, mas que evocam esses estabelecimentos para vender uma ideia de legitimidade boêmia.

Esse movimento assombra boêmios identificados com a velha tradição do botequim, que veem tal identidade ameaçada. Para estes, no botequim carioca, o serviço é secundário. O importante é seu caráter de clube social da vizinhança, onde funciona como ponto de encontro e de sociabilidade. Mais relevante do que o menu e a carta de cervejas é a relação entre freguesia, garçons e donos de botecos. Esses guardiões da tradição resistem contra os novos usos do bar, e se apegam intransigentemente aos sinais físicos e simbólicos da identidade original do velho botequim, como o balcão, o ovo colorido e uma boa conversa fiada.

Como percebeu Mia Couto, há um tanto de fetichismo em todas essas identidades. E como são vividas como se parte da nossa existência estivesse em jogo, é preciso brigar por elas. Enquanto isso, a vida segue, e o que se vê é que a boemia do Rio hoje tem múltiplos espaços de representação. E, por enquanto, o velho pé-sujo e o novo boteco convivem na cidade.

5 comentários:

A VIDA NUMA GOA disse...

Li o texto no jornal, gostei. Em tese, concordo contigo e com o Mia. Na minha tese de doutorrado (sobre a identidade de Goa, dentre outras coisas), segui essa linha, de identidades transitórias etc. Mas na prática, hoje, confesso-me um tremendo conservador essencialista que quer ver os botequins incólumes... São contradições, bem sei, somos feitos disso.

A VIDA NUMA GOA disse...

E tenho este soneto recente:

http://avidanumagoa.blogspot.com.br/2012/08/cobogos-em-casa-abandonada-no-cubango.html

Abraço

ipaco disse...

Eu também sou como você. Compreender o fenômeno não nos isenta de sentir as coisas e as perdas, não é mesmo? Nos últimos anos, vi umas duas dúzias de botecos tradicionais fecharem as portas, com muita tristeza.

abs

ANNA disse...

Alô,meu querido,bom dia!
Em Março deste ano,estive no Rio e,hospedada numa ruazinha,alí meio Catete,meio Flamengo,tinha,aos Sábados e Domingos,o hábito de reverenciar os deuses do futebol,no solo sagrado do Pé Sujo que ficava em frente.No soar solene do apito final,fosse quem fosse o vencedor da contenda,cavaco e violão,tamborim e pandeiro,abençoavam a noite invadindo a madrugada.O penalti não dado,o cartão mal aplicado,o escandaloso impedimento não visto,sumiam na alegria da batucada e as rivalidades já não importavam.
Este é o Rio que eu amo e pelo qual suspiro todos os dias.
No Pé Sujo ou no Botequim com ares de Academia,se a alma Carioca não for corrompida pelos modos elegantes das gentes que nunca perdem a pose e não conhecem a catarse da alegria ou do coração partido,então tudo ficará bem e esta cidade continuará sendo o inferno mais parecido com o paraíso que conheço!
E vc,td bem?
Bjs,
Anna Kaum.

ipaco disse...

Obrigado por suas palavras, Anna. Este também é o meu Rio. Bjs.