terça-feira, 5 de maio de 2009

Jornalismo e boemia


Os espelhos do Lamas, utensílio essencial para o flerte

O jornalismo vive hoje vários de níveis de crise, situação que promete mudar estruturalmente a forma como as notícias são apuradas, escritas e divulgadas. Estamos no meio de uma revolução no setor. No mês passado O Globo demitiu nove jornalistas, a maioria com muitos anos de casa, com quem fizeram acordos de antecipação da aposentadoria. Ontem foi a vez de O Dia e o Expresso porem na rua 15 profissionais. Lá fora, a coisa é ainda pior. Vários jornais centenarios estão fechando as portas, reduzindo o tamanho das publicações ou passando a sair exclusivamente online. Sem falar em falências, como a que se anuncia no Boston Globe, da mesma empresa que edita o New York Times. Além da queda de leitores e anúncios, a crise financeira global afeta o setor, no caso brasileiro, de duas formas: o aumento dos preços do papel, o insumo mais caro dos jornais, e o aumento do dólar.

No dia em que foram anunciados os cortes no Globo, depois do expediente, quase por reflexo condicionado, fui para o Lamas, o velho café centenário do Flamengo, onde há até pouco tempo, os jornalistas se reuniam, após os fechamentos de seus respectivos jornais, para um chopinho, jantar e trocar idéias, comentar as edições que estavam chegando à rua e saber das últimas das redações. A turma do Jornal do Brasil, do Dia, do Globo, assessores de imprensa, enfim, os coleguinhas, como se diz no meio, se encontravam em determinados bares após o expediente, entre eles o Lamas.


O amplo salão do Lamas anda vazio por esses dias, mesmo com o novo salão isolado para fumantes

Pois no dia em questão não havia uma única alma conhecida no amplo salão do Lamas, com exceção do Arthur Poerner, que bate ponto no bar, e os garçons quase tão centenários quanto o Lamas, como o Vieira, na minha opinião, um dos melhores garçons do Rio de Janeiro. Sentado ali, jantando sozinho, não pude deixar de me perguntar, aonde estariam os coleguinhas. Também lembrei dos tempos áureos, em que o Lamas, lotado, era palco de discussões acaloradas dos temas nacionais. Colegas misturando chope com uísque e outros destilados. Coleguinhas de assessoria tentando empurrar notinhas e coisa e tal, dicas, trocas de informação e coisa e tal. É verdade que, além do Lamas, havia e há outros bares que recebem os jornalistas, justamente aqueles que fecham mais tarde, dando tempo de o pessoal sair da redação e ainda jantar. O Cervantes, em Copa; o Vermelhinho (que reunia a turma de esquerda), na Cinelândia; e o Capela, na Lapa; também são exemplos, entre outros.

Sentado ali, sozinho, lembrei de um artigo que li (e usei na minha tese sobre as relações de trabalho nas redações de jornais) sobre as novas gerações de jornalistas. Foi uma pesquisa elaborada pela antropóloga Alzira Alves de Abreu. Ela pesquisou entre jornalistas da velha guarda e recém-chegados às redações de vários jornais importantes do Rio e São Paulo. Resumindo a coisa grosseiramente, Alzira percebeu que os mais antigos são da geração boêmia e heróica e os mais novos, da geração profissional.

Na redação do Globo eu já havia percebido bem os dois tipos. Aqueles jornalistas da velha guarda, que valorizam a apuração na rua, que acham que podem mudar o mundo e que o jornalismo tem esse dever, e que são, sobretudo, boêmios, pois no bar está parte de seu trabalho, apurando, pensando em pautas e estabelecendo contatos. De outro lado, as novas gerações, com texto impecável, uma visão profissional incrível (quase todos querem virar o diretor de redação) e que acham que a função do jornalismo é simplesmente informar com precisão e rapidez e não transformar a sociedade. É uma galera que, em geral, entrou nas redações muito nova, com menos de 25 anos, e não viveu a experiência da ditadura e os tempos difíceis dos anos 70 e 80 e já nasceram dominando as novas tecnologias, como informática, telemática e o escambau.


Ponto de encontro de estudantes, jornalistas e boêmios, o Lamas vive hoje um outro momento, mas ainda é uma das melhores saideiras do Flamengo

Os jornais também mudaram. Tentam equilibrar a delicada posição ambígua de ser uma empresa que visa ao lucro de seus acionistas e ao domínio da concorrência, ao mesmo tempo que se pretendem instituição das sociedades democráticas, cumprindo o papel de pôr em questão as ações dos poderes. É óbvio que em vários momentos essas duas orientações se chocam inevitavalmente e, na hora do vamos ver, a primeira tende a se impor sobre a segunda.

De modo que, na minha opinião, a crise por que passa a imprensa não é só financeira. É muito mais estrutural. Como a relação é dialética, as transformações que afetam os jornais, mudam o perfil dos jornalistas, que se adaptam às novas identidades dos veículos. Dessa revolução não só muitos jornais vão fechar, inclusive alguns tradicionais, mas sobretudo a forma de fazer jornalismo passará a ser completamente diferente. Vamos ver no que vai dar.

10 comentários:

Unknown disse...

Vai dar nisso que já está ditando as regras: mentalidades tão vazias quanto as mesas do Lama. Triste.

ipaco disse...

Pois é, Bruno. Esse é o meu medo...

Camaleoa disse...

Muito bom te ler.
Eu tenho 35 anos, não vivi a ditadura nem esse lance de sentar com os colegas depois do fechamento e falar sobre o dia e trocar informações. Maior parte da minha experiência é em assessoria de imprensa, por falta de opção, e aqui em São Paulo começo a construir isso, de alguma maneira. Você falando de fechamento de jornal e eu decidindo (hoje) a retomar o meu simples e belo (ele é bonito, você sabe) Jornal da Praça, de quatro páginas.
Apesar de nova e da pouca vivência de redação de um grande jornal diário, nunca me enganei de que o maior aprendizado era com esses sujeitos.
Apesar de nova (ou será que já fiquei velha?) não consigo entender a mentalidade dessa geração de vinte e poucos anos que acha que ser jornalista é ter um bom salário e ter um lead bem escrito. Me irrita e me cansa. Sem falar que a idéia de ser contestador e agressivo é completamente pobre. Não há o mínimo de inteligência irônica, humorística, artística ou intelectual. Salvo lá as exceções. Acho que talvez falte mesmo humildade em aprender todo dia um pouco.
A informação como um apanhado de anotações bem estruturadas num texto. E ponto.
Bom... ainda quero lutar pelo meu sonho, pelos meus jornais e, ao final, como jornalista, olhar pra trás e pensar... foi ducaralho!

ipaco disse...

Querida amiga Camaleoa, o Jornal da Praça, que conheço bem, é ducaralho! Pode ficar orgulhosa. Em todos os sentidos. Eu comecei minha carreira como frila e assessor de imprensa de sindicato e este foram os melhores anos. Rodei o continente atrás de reportagens que saíam da minha cabeça. Depois o espaço das grandes reportagens foi minguando para dar lugar a notícias de celebridades e fait-divers sensacionalistas. Os jornais enxugando o número de suas páginas para manter os dividendos dos acionistas etc. Isso foi levando o próprio leitor a ficar mais interessado em assuntos triviais de consumo rápido. Agora, ninguém suporta mais uma extensa repportagem sobre, por exemplo, os ribeirinhos da Amazônia ou como é o dia a dia das pessoas na revolução bolivariana em Venezuela, Bolívia e Equador... O mundo do "outro" não interessa mais, por isso não se toleram sequer as favelas da esquina. Bejim. pt

Marcelo Moutinho disse...

Meu querido, nao sei onde me enquadro ai, talvez entre as duas geracoes, mas e uma questao a ser pensada mesmo (desculpe pelos acentos, estou em Toronto e os teclados sao esquisitos)

ipaco disse...

Salve, Marcelo. Agora entendi porque o Pentimento anda meio desatualizado... Volta logo. Abs. pt.

Marcelo Amorim disse...

Paulo, segue o link de uma notinha que pesquei agora mesmo sobre esse assunto: http://www.bluebus.com.br/show/1/90354/escolas_de_jornalismo_ja_estao_procurando_alternativas_e_1_novo_modelo

ipaco disse...

Valeu, querido. Vou olhar lá. Abs. pt.

Malvinas Família Futebol Clube disse...

Paulo,

Outro dia me assustei com uma cena que vi no aeroporto. A delegação do Fluminense estava chegando e um jornalista com o laptop já mandando informações para o site. Honestamente, nem lembro do tal jornalista conversando com os jogadores, com a comissão técnica ou algum torcedor.

É lamentável.

ipaco disse...

Querido Casé, a coisa tá feia. A revista Economist dessa semana está com uma grande matéria sobre o assunto, falando que a imprensa, como conhecemos está desaparecendo nos EUA. As pessoas estão deixando de ler jornais para "ver" notícias em sites como o Google e coisa e tal. Os repórteres saem agora preocupados em captar a imagem e o áudio e acabam esquecendo de conversar com os entrevistados, olhar nos olhos, sacar nuances, contradições etc.