Rua de Botafogo, na minha vizinhança. A última casa à direita deu lugar a um espigão há um ano e meio
Amigos, volta e meia discorro aqui no Pendura sobre a importância do comércio de rua. Insisto no papel integrador que essas casas comerciais — de botequins a salões de beleza, de açougues a jornaleiros, do aviário à casa de artigos de candomblé, do barbeiro da esquina ao secos & molhados do seu Antonio — desempenham em seus bairros, servido de ponto de encontro, de troca de informações, de sociabilidade e de socialização da vizinhança na cultura específica da rua, do bairro. É essa cultura que dá a cada bairro da cidade a sua singularidade e ao morador as chaves para ser e estar ali.
Os botecos inclusive têm ainda uma função de clube social, onde os vizinhos se encontram para jogar conversa fora e debater filosoficamente questões da maior importância, em contendas que só têm comparação no simpósio descrito por Platão, no seu banquete. Debates sobre o amor, a honra, o respeito, a política, o futebol, a mulher e por aí vai. Sempre calorosos, às vezes exaltados.
Para mim esse fenômeno urbano é tão óbvio, que me exaspera ver que as autoridades, encasteladas em seus distantes núcleos de poder, não se dão conta ou simplesmente não querem ver esse aspecto de extrema riqueza e importância para a vida social dos bairros. Executam seus planos de urbanização sem conversar com os moradores que serão afetados, partindo simplesmente de visões preconceituosas e estereotipadas, mas sobretudo autoritárias, normalmente a partir do ponto de vista de uma classe média assustada com a cidade, ponto de vista esse que ganha incrível ressonância na mídia.
O bloco do Barbas, que brinda os foliões encalorados com um banho de carro-pipa: um verdadeiro êxtase
A isso se soma uma indústria imobiliária feroz, que em seu afâ de vender o máximo possível de unidades residenciais (sim, porque não dá para chamar de apartamento ou casa os espaços que oferecem) inventam condomínios supostamente autosuficientes, que oferecem tudo: bar, piscina, sauna, videolocadora etc. e ajudam a esvaziar as calçadas da vizinhança onde se instalam. Os moradores desses lugares, igualmente convencidos de seu status de "modernos", evitam o comércio de rua, preferindo os shoppings, os hipermercados, os centro comerciais. A Barra da Tijuca é um exemplo dessa lógica e é, por isso, que em boa extensão do bairro não se vê viv'alma nas calçadas. É talvez o único bairro do Rio que exige que seus moradores possuam carro.
Como já disse aqui, vivo num pedaço de Botafogo que muito se assemelha aos melhores bairros da subúrbio carioca. Com suas casas, sobrados e prédios de, no máximo, três ou quatro andares, essa área é cercada do mais vasto e variado comércio de rua. De bicicletário a reparador de fogões, das velhas padarias a chaveiro. Ali estão velhos ofícios, como sapateiro, alfaite, jornaleiro, apontador de jogo do bicho, mecânicos etc. À tarde, os cachorros das casas latem e a criançada grita, correndo atrás de bola, andando de bicicleta ou soltando pipa na praça. A velha guarda fica nos botequins, observando a rua. São os olhos informais da rua, observando as gerações crescerem, o movimento diário da vida no bairro. Foi por isso que o Chico, da Adega da Velha, percebeu logo que havia algo estranho e anormal na conversa de Marianinha com o estranho, como relatei aqui, alguns posts abaixo.
O Belmiro, boteco de esquina de Botafogo
Sucede, que a vida na cidade é incontrolável e todas esses elementos — o tradicional e o novo — estão em contante confronto e mutação. Em algumas áreas da cidade eles se impõem de forma tão acachapante, que a região muda completamente, num processo de gentrificação, ou aburguesamento, como aconteceu com o Leblon nos anos 60, que, de bairro classe média baixa, se tornou uma das referências da elite carioca. Ou, para trazer a coisa mais para perto, como parece estar acontecendo com Santa Teresa hoje em dia.
O jovem de classe média fica inebriado com o aspecto bucólico e proletário do bairro e se muda para lá. Sua convivência ali, no entanto, não é de fácil assimilação, pois ele é visto como alguém de fora. No entanto, ele vai convencendo outros de seu grupo social a se mudaram para lá e acaba formando uma comunidade dentro da comunidade. Aí começa uma demanda por serviços e produtos que antes não existia, determinado shampoo para a namorada, tipo de comida mais macrobiótica etc. Daqui a pouco, surge um restaurante de comida natural e uma botique de produtos para a pele. Aí um incorporador imobiliário vê a chance de subir um espigão voltado para o perfil desse novo consumidor e coisa e tal. Aos poucos o bairro bucólico e proletário vira um arremedo do que era. e, quando se vê, a morfologia social do bairro mudou para sempre.
A rua Arnaldo Quintela, vista da minha janela
As gerações vão se sucedendo e novos valores vão surgindo. As coisas mudam inevitavelvemente. Mas também é concreta a resistência a essas transformações que ocorre aqui e ali. De minha parte, eu, que desisti de ter carro desde quando tive idade para tê-lo, prefiro uma calçada cheia de gente e movimentada, onde possa caminhar, do que um lugar vazio, espremido entre condomínios estratosféricos e autopistas de grande velocidade.